Mundialmente conhecida, a artesã paraense Dica Frazão é ícone da cultura de Santarém (PA) e um dos nomes mais importantes da moda amazônica. Falecida em 19 de maio de 2017, aos 96 anos, seu legado está presente no museu homônimo, localizado na Rua Floriano Peixoto, número 281. No casarão, muito além de história, encontramos o acervo pessoal da mulher que transformava a natureza em peças únicas.

Em 2012, produzindo uma série de entrevistas para a Record News, tive a honra de conversar com dona Dica. Ela era, sem dúvida, habilidosa com as mãos e nas palavras, orgulhava-se de ser quem era e só lamentava não ter concluído o museu em vida. “Meu nome é Raimunda Rodrigues Frazão, Dica Frazão, o meu nome artístico”, apresentava-se aos visitantes, mesmo com a saúde debilitada e em uma cadeira de rodas. A idade avançada, porém não tinha lhe tirado a boa memória. Conversava com todos e mesmo com a pouca visão, fazia questão de conhecer cada visitante.

Dona Dica Frazão fazia questão de receber cada visitante e explicar todas as peças do seu museu (Foto: Maria Fernanda Ribeiro)

Dica nasceu em 1921 no município de Capanema (PA) e muito cedo aprendeu o significado da palavra responsabilidade. “Perdi minha mãe aos 12 anos de idade, ela morreu no parto. Nós éramos oito irmãos e o nosso pai não vimos morrer, ele desapareceu. Sumiu simplesmente, nunca mais o encontramos. Eu criei toda minha família, o juiz na época tentou nos separar, mas não conseguiu. Fiquei com todo mundo, eduquei e criei. Todos os meus irmãos são meus filhos, não sei que força tão grande tive, mas consegui cuidar deles”, recordou. A vida era difícil e a jovem trabalhava na roça, sem tempo para os estudos. Mas foi autodidata na arte de criar e a noite aproveitava para costurar.

Em 1943 decidiu que era hora de mudar de cidade e encontrou em Santarém seu porto seguro. Na época, já sendo uma costureira de mão cheia caiu no gosto das mulheres da sociedade e se tornou uma modista de sucesso. “Comecei a colher as flores do jardim, despetalava para poder aprender a fazer as flores. Enquanto não conseguia fazer igual, não sossegava. Comecei então a fazer as flores, a costurar e me tornei uma grande modista. Como desmanchei todas as roupas que ficaram do meu pai, me tornei também alfaiate, então fazia os vestidos de noiva e os ternos dos noivos”, lembrava com saudosismo.

Como artesã, a primeira peça de sucesso foi um leque, confeccionado com penas de pássaros. Aos 29 anos o talento dela era reconhecido e motivo de convites. Em 1972, o Theatro da Paz, em Belém, recebeu vários artistas para o evento Semana de Santarém. E entre os convidados estavam dona Dica que depois da exposição recebeu inúmeras encomendas. Sua arte ganhou ainda mais visibilidade e suas criações foram parar nas mãos de pessoas importantes como a Rainha Fabiola, da Bélgica; o Presidente Juscelino Kubitschek e o Papa João Paulo II. Do vaticano dona Dica recebeu um diploma de agradecimento que está exposto no museu.

Galeria de vestidos criados com fibras de árvores por Dica Frazão

Em 1987 recebeu o Título de Cidadã Santarena e este reconhecimento foi a razão que lhe fez criar seu próprio museu. Uma maneira de guardar as criações em um único espaço e aberto à visitação. Os cômodos do casarão onde ela morava ganharam vitrines em 1999, uma verdadeira boutique de luxo. Aqui encontramos peças feitas com materiais extraídos da natureza: malva, juta, milho, entrecascas de árvore, fibras extraídas de capim, palha de buriti, sementes, raízes de patchouli e outros materiais. “A fibra  que uso nas minhas peças é a entrecasca de uma árvore que são os índios mundurukus que extraem e não revelam o nome, é um segredo deles. Ela vem assim, como se fosse a roupa da árvore. Depois que eu lavo e preparo, ela vai se transformando em um tecido com muita resistência. Só deus pode nos dizer quantas maravilhas tem a natureza”, revelava a artesã que para não comprar penas e fazer seu trabalho de maneira sustentável, criava em seu quintal aves como pavão e ganso para retirar a matéria-prima. Na casa, cada parede tem arte.  Existem quadros, criações artísticas e fotografias por todos os lados. O livro de visitas tem assinaturas e mensagem de gente do mundo todo. São mais de 150 peças catalogadas no museu.

Dona Dica foi uma mulher extraordinária, guerreira mesmo, daquelas nos inspiram pela força de vontade e criatividade. Seu único lamento era o descaso dos governos com a cultura, repetida sempre em suas entrevistas e reforçada neste trecho da nossa conversa: “Nós artistas não somos cuidados pelas autoridades. Mesmo assim acredito que um dia alguém lembrará que existimos”. Era também vaidosa, orgulhosa de ter criado uma arte singular e ser santarena, mesmo que de coração. “Eu amo Santarém, é a minha terra natal. Eu fui adotada e ela me adotou, não sei qual de nós duas lucrou mais”, falava a mulher que dedicou a vida inteira à arte de criar.

Museu de Arte Dica Frazão

Rua Floriano Peixoto, nº 281- Santarém (PA)

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Sobre o autor

Jornalista, formado pelo Centro Universitário da Cidade do Rio de Janeiro - RJ. Produtor Cultural e Produtor de Conteúdo Digital. Idealizador dos projetos Caminhos da Floresta, Amazônia Fashion Weekend e Piracaia Festival. Autor do blog de turismo e viagens www.diariodofb.com. Diretor dos documentários O que é Sairé? (2021) e Trap: O som da juventude (2021) - produzido, gravado e editado em um smartphone.

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